O
quietismo é a atitude das pessoas que dizem: os outros podem fazer
aquilo eu não posso fazer. A doutrina que vos apresento é justamente a
oposta ao quietismo visto que ela declara: só hárealidade na ação; e vai
aliás mais longe, visto que acrescenta: o homem não é senão o seu
projeto, só existe na medida em que se é portanto nada mais do que o
conjunto dos seus atos, nada mais do que a sua vida.
De
acordo com isto podemos compreender por que a nossa doutrina causa
horror a um certo número de pessoas. Porque muitas vezes não têm senão
uma única de suportar a sua miséria, isto é, pensar as circunstâncias
foram contra mim, eu muito mais do que aquilo que fui; é certo que não
tive um grande amor, ou uma grande amizade, mas foi porque não encontrei
um homem ou uma mulher que fossem dignos disso, não escrevi livros
muito bons, mas foi porque não tive tempo livre para o fazer; não tive
filhos a quem me dedicasse, mas foi porque não encontrei o homem com
quem pudesse realizar a minha vida. Permaneceram, portanto, em mim e
inteiramente viáveis, inúmeras disposições, inclinações, possibilidades
que me dão um valor que da simples série dos meus atos se não pode
deduzir. Ora, na realidade, para o existencialista não há amor diferente
daquele que se constrói; não hápossibilidade de amor senão a que se
manifesta no amor, não há gênio senão o que se exprime nas obras de
arte; o gênio de Proust é a totalidade das obras de Proust; o gênio de
Racine é a série das suas tragédias, e fora disso não há nada; por que
atribuir a Racine a possibilidade de escrever uma nova tragédia, já que
precisamente ele a não escreveu? Um homem embrenha-se na sua vida,
desenha o seu retrato, e para lá desse retrato não há nada. Que
significa aqui o fato de a existência preceder a essência? Significa que
o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo, e que só
depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é
definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma
coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza, visto
que não há Deus para a conceber. O homem é, não só como ele se concebe,
mas como ele quer ser; como ele se concebe depois da existência, como
ele se deseja após este impulso para a existência, o homem não é mais do
que o que ele faz de si mesmo. Tal é o primeiro princípio do
existencialismo. É também a isto que chamamos subjetividade e pelo que
somos censurados sob o mesmo nome. Mas que queremos dizer com isso,
senão que o homem tem uma dignidade maior do que uma pedra ou uma mesa?
Pois o que nós queremos dizer é que o homem primeiro existe, ou seja,
que o homem, antes de mais nada, se lança para um futuro, e que é
consciente de se projetar no futuro. O homem é, antes de mais nada, um
projeto vivido subjetivamente, ao invés de ser um creme, qualquer coisa
podre, ou uma couve-flor; nada existe anteriormente a este projeto; nada
há no céu inteligível, e o homem será antes de tudo o que ele houver
projetado ser. Não o que ele quiser ser. Pois o que vulgarmente
entendemos por querer é uma decisão consciente que, para a maior parte
de nós, é posterior ao que alguém fez de si mesmo. Posso querer aderir a
um partido, escrever um livro, casar-me; tudo isso não é mais do que a
manifestação duma escolha mais original, mais espontânea daquilo que se
chama vontade. Mas se verdadeiramente a existência precede a essência, o
homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro esforço do
existencialismo é o de pôr todo homem de posse do que ele é e
atribuir-lhe a responsabilidade total por sua existência. E, quando
dizemos que o homem é responsável por si próprio, não queremos dizer que
o homem é responsável por sua estrita individualidade, mas que é
responsável por todos os homens. Há dois sentidos para a palavra
subjetivismo, e é com isso que jogam nossos adversários. Subjetivismo
quer dizer, de um lado, escolha do sujeito individual por si próprio; e,
por outro, impossibilidade do homem em superar a subjetividade humana. O
segundo é que é o sentido profundo do existencialismo. Quando dizemos
que o homem se escolhe, queremos dizer que cada um de nós se escolhe;
mas, com isso, também queremos dizer que, ao se escolher, ele escolhe
todos os homens. Com efeito, não existe um ato nosso que, ao criar o
homem que desejamos ser, não crie ao mesmo tempo uma imagem do homem
como julgamos que deve ser. Escolher ser isto ou aquilo é afirmar ao
mesmo tempo o valor do que escolhemos, pois nunca podemos escolher o
mal; o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós sem
que o seja para todos. Se a existência, por outro lado, precede a
essência e se quisermos existir, ao mesmo tempo em que construímos a
nossa imagem, esta imagem é válida para todos e para toda a nossa época.
Assim, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor,
porque ela envolve a humanidade.
O existencialismo é um Humanismo. Lisboa, Presença, s/d/, p. 241
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