São armadilhas suaves que nos pegam pelas pernas, e nos enlaçam. Dão cama, casa e comida enquanto a gente acha que reconstrói tudo aos poucos – sem saber que tudo aquilo vai desmoronar num piscar de olhos. Subtraem enquanto a gente acha que soma. E somem num instante. Deixam a gente em pó suspenso no ar. Embaçam os óculos e atrapalham a respiração. Lembranças são a marcha ré disparada sem querer no meio do engarrafamento.
E a gente bate com tudo no que deveria nem encostar.
Embaçam a vista e a vida. E se fazem de dissimuladas: o que era ruim desaparece e o que nem era tão bom assim ganha um peso de sobrecarga. Um sorriso de lado vira a coisa mais bonita que a gente já viu. E as histórias de corações partidos são substituídas por mal-entendidos irreais. As lembranças se misturam e se chocam. Servem de travesseiro pras noites mal dormidas. E acabam recriando cafunés que nunca existiram.
Lembranças são o resto da memória que ainda vive. Se escondem nos ralos e nos cantos escuros do corredor da casa. Se disfarçam de porta-retratos e roupas guardadas. É nelas que a gente revive o que a gente foi – e o que nunca foi também. Elas não são feitas de deixar de ser. Elas são, e nos cutucam na ferida aberta a cada novo momento. Sem alarme de incêndio pra avisar do fogo. São queimaduras de segundo grau que a gente ganha pela exposição prolongada ao passado. E nos transportam para o ponto final do início de tudo. O fim de alguma história se torna ponto de partida – e mal sabemos nós que estamos presos a um ciclo vicioso de repetições. Tanto das lembranças quanto das ações. E os fins entortam os meios.
E a gente parece não lembrar direito o que aconteceu. Só se lembra de que acabou. Ou que nem chegou a existir.
Elas são de uso exclusivo aos que possuem corações fortes. São prescritas de forma a seguir uma bula de nostalgia e sofreguidão. É como colocar um doce na boca de uma criança e tirá-lo depois. Só que as crianças somos nós. E daí nos prescrevem tarjas-pretas.
Lembranças podem nos levar à loucura, de fato. Mas eu espero que a nossa loucura possa ser perdoada. Porque a gente ainda não descobriu como se desfazer do doce vício de relembrar antigos diálogos e fotografias.